INTRODUÇÃO
Todo ser humano, para o bem ou
para o mal, poderia tomar decisões com maior probabilidade de êxito caso conhecesse
a verdade antes de agir. Um ser humano saudável usaria esse
conhecimento para alcançar o maior bem, para si e para os seus semelhantes. Entretanto,
a menos que a verdade - ou algum dogma, hábito, paradigma, ou mero padrão operacional - já tenha sido
previamente estabelecida, toda ação em primeira mão é um experimento, planejado
ou não, para se chegar a ela.
Mas, o que é a verdade? Qual o
método para descobri-la? Quais os critérios para saber se ela foi encontrada?
Esta reflexão começa a responder
o que é a verdade a partir de um dicionário comum. Avança pela apresentação
sumária de três posicionamentos respeitáveis sobre o tema. Em seguida caminha
para encontrar um conceito neutro universal adaptável a situações particulares.
Após ilustrar o conceito de verdade em vários campos da atividade humana,
consolida comentários finais em busca de uma conclusão, mas sempre tendo em
vista a solução dos problemas concretos humanos.
O SIGNIFICADO DO VOCÁBULO VERDADE
SEGUNDO UM DICIONÁRIO COMUM
Segundo o Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa o vocábulo verdade é um substantivo feminino com cinco acepções: “1 propriedade de estar conforme com os
fatos ou a realidade (a v. de uma afirmação) (v. histórica) 1.1 a fidelidade de uma representação
em relação ao modelo ou original (a v. de um quadro) 2 p. ext. coisa, fato ou evento real 3 p. ext. qualquer ideia, princípio ou julgamento aceito como
autêntico; axioma (as v. de uma religião, de uma filosofia) 4 p. ext. procedimento sincero, pureza
de intenções (agir com v.) 5 FIL correspondência, adequação ou harmonia
passível de ser estabelecida, por meio de um discurso ou pensamento, entre a
subjetividade cognitiva do intelecto
humano e os fatos, eventos e seres da realidade objetiva (...)”
O texto acima é autoexplicativo,
ou deveria ser. Não farei comentários sobre ele. Que o leitor reflita a respeito tendo em vista a
própria experiência de vida. Que consulte outros dicionários e, se puder, algum
dicionário de filosofia como, por exemplo, o Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia,
de André Lalande, ou o Dicionário de Filosofia de Abbagnano. Esse tipo de
leitura exige muita paciência e tempo, por isso não é uma condição para
acompanhar esta reflexão.
A seguir serão apresentados,
sumariamente, três influentes pontos de vista a respeito: 1. A abordagem cristã, segundo Tomás de
Aquino, consolidada na Suma Teológica;
2. A abordagem marxista, segundo Jacob
Bazarian, consolidada no livro O Problema da Verdade; 3. A abordagem do
melhorismo contínuo, de Karl R. Popper apresentada, entre outros, no livro Por
Um Mundo Melhor. Cada uma dessas abordagens será apresentada sumariamente nos
três parágrafos seguintes para, em seguida, tentar-se encontrar um conceito de
verdade unificado, adaptável a situações particulares.
TRÊS ABORDAGENS REPRESENTATIVAS
DO PROBLEMA DA VERDADDE
Tomás de Aquino (1225 — 1274) foi
um padre dominicano, filósofo e teólogo,
proclamado santo e Doutor da Igreja Católica Apostólica Romana. Sua
abordagem mais direta do tema está desenvolvida na Suma Teológica, Volume I,
Edições Loyola, Questões 16 e 17. Após
analisar os autores relevantes que, até então, definiram a verdade, incluindo
Platão, Aristóteles e Agostinho, ele adotou que “A verdade é a adequação da
coisa e do intelecto”. Isso quer dizer
que a verdade está na coisa e que, depois de pesquisada, é representada no
intelecto, com maior ou menor fidelidade, além de ser comunicada e entendida
com maior ou menor fidelidade, podendo gerar uma cadeia de mal entendidos,
mesmo quando a intenção é boa. O
interesse de Aquino estava na determinação da verdade sob a perspectiva moral e
ética, aceitando sem questionamento as verdades fundamentais ensinadas pelo
Magistério da Igreja, cuja origem primária ele considerava ser a revelação
divina registrada na Bíblia. Em Aquino, o método é a lógica formal
aristotélica, e o critério para definir a verdade é o peso da autoridade,
resguardada a autoridade maior de Deus, da Bíblia e da tradição, segundo a
interpretação do Magistério da Igreja sobre temas de fé e moral.
Jacob Bazarian (1919 - 2003) foi
um filósofo brasileiro de origem armênia que acreditava que a filosofia
encontrou a sua representação mais avançada no marxismo. De acordo com sua
opinião, expressa no livro O Problema da Verdade, a concepção marxista é
compatível com a concepção de Tomás de Aquino, exceto quanto aos pressupostos
religiosos e suas consequências. Ele
defendeu, quanto à verdade, um
absolutismo relativista em oposição ao absolutismo e ao relativismo. Em sua
opinião, cada situação concreta tem a sua verdade. O método marxista de busca
da verdade, também chamado de dialética materialista, teria sido explicado de
forma clara, segundo Bazarian, no texto
de Mao Ze Dong, Sobre a Prática (Veja-se o texto em: http://www.marxists.org/portugues/mao/1937/07/pratica-ga.htm.),
como uma descrição fiel da mesma. Quanto ao critério supremo da verdade,
somente a prática poderia ser tomada como tal, independente de quaisquer
outros. Como sabemos, embora Bazarian não o ressalte, a verdade na política, de
acordo com Karl Marx, está sempre a serviço da classe dominante, no caso, o
proletariado representado pelo partido dos trabalhadores, ou equivalente.
Karl Raimund Popper (1902 — 1994)
foi um filósofo da ciência austríaco naturalizado britânico que assumiu
Einstein como o modelo mais avançado de cientista. Para ele, a verdade é uma
meta nunca atingida, porém sempre buscada. O método para se chegar a ela, na
sua visão, consiste em aprender com
erros e acertos, em ambiente de liberdade responsável. Em sua opinião não existem
critérios verdadeiros sobre a verdade. O
máximo que se pode fazer seria submeter as teorias e hipóteses a testes
cruciais que poderiam derrubar ou mantê-las de pé, usando critérios proveniente
do consenso entre a comunidade da verdade, no caso a comunidade científica.
Mesmo que passem num teste, hipóteses, teorias e leis poderiam ser derrubadas em novos e mais
rigorosos testes futuros. Ele combateu o marxismo, especialmente quanto à
pretensão de ter encontrado uma verdade definitiva da História, centrada na
luta de classes e na superação dessa luta pela adoção do socialismo como
ante-sala do comunismo, este representando um espécie de paraíso na Terra em
substituição ao paraíso no Céu.
EM BUSCA DE UM CONCEITO NUCLEAR
UNIFICADO
Após a leitura comparativa das
proposições/interpretações de Aquino, Bazarian, e Popper, entre outras fontes, evidenciou-se, para mim, uma definição nuclear
de verdade com um nítido apelo universal: a verdade “é o que é”. Só existe a verdade sobre algo, e não uma
coisa chamada verdade, a não ser que se aceite, sem questionar, que ela seja
uma relação entre o objeto e o pensamento. Ela deve ser pesquisada usando os
meios acessíveis e pertinentes, sendo os resultados dessa pesquisa apreendidos
pelo intelecto e representados por uma combinação de palavras, diagramas, modelos mentais, modelos matemáticos
e físicos.
Sob essa perspectiva, existem
dois grandes tipos de verdade: aquela que independe da vontade humana, e que
está contida nas coisas naturais; e
aquela que depende da vontade humana, e está contida nas coisas construídas,
incluindo nelas as regras de conduta, tácitas ou explícitas. O método, sob essa
perspectiva, poderia ser qualquer, desde que conducente a resultados práticos. Os
critérios devem ser definidos pela comunidade da verdade.
Uma vez descoberta, ou construída,
a verdade precisa ser comunicada. Contudo, além de ela raramente ser
conhecida de forma completa e definitiva, sua comunicação pode gerar uma cadeia
de mal entendidos, ainda que haja boa intenção entre as partes. Essa representação pode estar, em diferentes
graus, em harmonia ou desarmonia com a
coisa representada, dependendo do critério de aferição utilizado.
Nos termos desta reflexão, a verdade,
sendo “o que é”, é absoluta, por
definição, porém nem sempre acessível em
sentido absoluto pela condição humana
finita e falível. A solução é buscar,
não a verdade absoluta, mas uma versão da verdade satisfatória para a natureza
do problema em foco. Ao trabalhar com
percepções da verdade, isso não quer dizer que ela seja relativa, mas apenas
desconhecida em sua plenitude. Essas percepções podem ser refinadas por aprofundamento da investigação do objeto
do conhecimento e pelo diálogo entre os pesquisadores, caso não se comportem
como inimigos que queiram impor o seu ponto de vista.
A seguir serão apresentados
alguns exemplos ilustrativos do que ocorre em algumas áreas do conhecimento
quanto à verdade.
ALGUNS EXEMPLOS ILUSTRATIVOS
A filosofia debate-se por séculos
ou milênios discutindo temas não passíveis de experimentação, inclusive a
própria definição de verdade. A longo prazo ela deu respostas inteligentes a
algumas perguntas, mas não se pode dizer que tenha encontrado verdades absolutas
que possam ser colocadas em prática, a não ser mediante ajustes para efeitos
operacionais. Esse é o caso, por exemplo, do problema da justiça humana.
Platão, por meio do personagem
Sócrates, deu uma solução teórica brilhante ao problema da definição de justiça
– Justiça é cada um ter e fazer o que lhe compete -; porém, nunca se chegou a
um acordo universal sobre a quem compete
dizer o que cada um deve ter e fazer, decisão relegada ao contexto político-ideológico.
A esse respeito leia-se, por exemplo, o
livro A Ilusão da Justiça, de Hans
Kelsen. A impossibilidade da aplicação
da justiça em termos rigorosos foi ilustrada no filme O Mercador de Veneza,
quando ficou evidente que ela precisa ser humanizada pela misericórdia, no
caso, segundo o padrão anunciado por Jesus Cristo.
A teologia, alimentada pela
filosofia, optou pelos dogmas como solução para evitar discussões intermináveis
sobre determinados assuntos. Ela pressupõe que a verdade pode ser perscrutada
pela razão, mas que, quanto a princípios fundamentais, ela não poderia ter sido
descoberta pelo homem, mas revelada por Deus. Tomás de Aquino foi um digno
representante da Igreja Católica quanto a combinar fé e razão na busca da
verdade pelo pensamento racional, partindo da aceitação de algumas verdades
reveladas por Deus e interpretadas pelo Magistério da Igreja. Porém, salvo
melhor juízo, Aquino só tratou de encontrar opiniões fundamentadas por
argumentos racionais, e não verdades verificáveis por meio de experimentos.
Na política, esgotados os recursos
do diálogo que se pressuponha racional, via persuasão verbal, busca-se a persuasão pela
força. Em última instância, o vencido é obrigado a aceitar as reivindicações de
verdade do vencedor, pelo menos provisoriamente, até que se reestruture e
reverta a situação, inclusive com estratégias de influência cultural. Coube a
Maquiavel explicitar que, na política, o governante busca geralmente o poder, e não a verdade, o que poderia reforçar o ponto de vista
daqueles que defendem que a verdade é relativa.
No mercado, o consumidor geralmente
é conquistado pela satisfação dos seus desejos, manifestos ou latentes, mais do que pela satisfação de suas reais
necessidades. Ele pode viver de ilusões por bons períodos de tempo, até que se evidenciem
os erros cometidos durante a satisfação de seus apetites doentios de consumo. No
mercado prevalece o relativismo de ambos os lados – consumidor e fornecedor -, até que a verdade se manifeste e desmascare
as ilusões de ambos.
No direito, a busca da verdade
tem se mostrado um problema social de alta relevância. A investigação da
verdade, neste caso, pode ser mascarada
pela subjetividade. Os fracos podem ser punidos
imediatamente, enquanto os poderosos podem ficar impunes por anos. Isso, entre outros motivos, em função do envolvimento de especialistas em
criar imagens da verdade, mediante pagamento, persuadindo o corpo de jurados e postergando
soluções. A “verdade”, neste caso, referenda as observações de Maquiavel: o
poder a determina. O poder da persuasão manipuladora comprada a preço de mercado.
Na medicina e na engenharia a
pretensão de trabalhar com a verdade
absoluta é claramente substituída por conceitos operacionais, sempre passíveis
de melhoria com o tempo e com a aprendizagem com erros e acertos. No caso da
medicina, por exemplo, sua evolução pode ser conhecida, em parte, pela leitura do livro com o sugestivo título A Assustadora
História da Medicina, de Richard Gordon.
No caso específico da engenharia de minas evidencia-se que a
verdade, incialmente buscada de forma genérica na física e na química, na
mineralogia e na geologia, desce ao nível mais concreto na pesquisa mineral, na
lavra e no beneficiamento. Podem-se fazer estimativas a respeito da ocorrência
de determinado bem mineral, investigando
o todo e consolidando tais investigações por meio de amostras mais ou menos
representativas. Em última análise, a realidade sobre o bem mineral, e assim mesmo em parte, só será conhecida durante e ao final de sua completa
extração.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A verdade “é o que é”. Ela pode,
eventualmente, ser descoberta por acaso, mas sua busca sistemática exige
investigação racional e experimental, com abertura para aceitar a intuição. Ela
pode ser construída pela vontade humana, e representada por produtos e regras
de conduta, tácitas ou explícitas, caso em que, para evitar confusão o termo
verdade deveria ser substituído por algum outro, talvez: hábitos, normas,
acordos, etc..
“O problema
central da verdade consiste em encontrar
um critério de verdade que seja verdadeiro.” Isso implica que cada decisão, em qualquer
área da vida, mesmo quando se combinam análise e síntese, é tomada por fé,
devendo ser confrontada com experimentos, planejados ou não, e sempre reconfirmada pela prática.
Impõe-se, antes de qualquer
discussão, viver. E os problemas da vida exigem soluções satisfatórias e não,
necessariamente, verdadeiras em sentido absoluto do termo. Contudo, isso não
quer dizer que a verdade seja relativa, no sentido de que cada pode ter a sua, mas que o acesso a ela é difícil e depende das
condições inerentes à natureza do problema e dos meios disponíveis à sua
investigação. O que cada um pode ter
livremente são percepções, opiniões e crenças.
Contudo, no que se refere ao
conhecimento produtivo, o método da engenharia é bastante apropriado: buscar a
verdade de forma progressiva, num processo de melhoria contínua. Isso implica
dominar a dinâmica do conhecimento, seja imitando, aperfeiçoando ou fazendo
inovações de ruptura. Para a mensuração dos resultados finais, deve-se lançar
mão do pensamento estatístico, e não apenas de palavras.
Entretanto, no limite, e já que a
verdade é sempre uma verdade sobre alguma coisa, é interessante levar em
consideração a afirmação de que “O
verdadeiro conhecimento só ocorre quando o conhecedor torna-se um com aquilo
que é”, conforme defenderam alguns
místicos lógicos, entre eles o santo
hindu Paramahansa Yogananda no seu livro Autobiografia de um Yogue, em
consonância com o que é afirmado no Bhagavad Gita. Uma análise racional sobre o tema pode ser
encontrada no livro Misticismo e Lógica, de Bertrand Russel, um ateu de alta
credibilidade intelectual.